Lanchinho da Madrugada (parte 1)

 Era um aniversário comum.
 O que é engraçado de se dizer, pois aniversários não deveriam ser comuns. Mas aquele era. Nada muito festivo ou brilhante, só tinha a gente. Minha mãe tinha feito o bolo, e minha irmã fez uns doces. Eu saí com meu pai, para comprar uma decoraçãozinha qualquer. Eu disse que não queria decoração, mas minha mãe insistiu.
 O jantar antes do parabéns foi animado. Meu pai contava histórias da infância dele, de como ele pegava fruta do pé na casa dos outros, de quando quebrou a perna fugindo da casa da namorada - não da casa em si, veja bem, mas do pai dela. Minha irmã foi mais legal comigo do que o habitual. Me deixou ficar com o último pedacinho dos frangos a milanesa. "Não se acostuma com isso," ela resmungou. Uma amor, a Dete.
 Eu fui o primeiro a terminar. Meu pai e minha irmã, logo depois, e minha mãe foi a última. Ainda estávamos na conversa, enquanto terminávamos, e quando o assunto morreu, minha mãe se levantou e retirou a mesa. Minha irmã ajudou ela.
 Enquanto as mulheres estava na cozinha, meu pai falou baixinho pra mim:
 "13 anos, hein?! Tá virando um homem. Se você prometer que não conta pra sua mãe, a gente divide uma cerveja depois do bolo."
 Eu prometi, não sabendo se aquilo era uma coisa boa ou não.
 Minha mãe apareceu, da porta da cozinha, com um bolo todo enfeitado de velas. As chamas dançavam conforme ela andava, e me hipnotizaram tanto que eu nem ouvi o início do cântico. "... nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida." Elas cantavam em coro, e meu pai se juntou apenas com palmas. Eu sorri, e olhei para o bolo. Ele dizia: "Parabéns Marreco!" Marreco é como o meus pais me chamavam quando era pequeno.
 "Vamos lá, faz o pedido," disse minha mãe. Seus dentes brancos contrastavam com sua pele morena e olhos castanhos. Ela era bonita, e eu gostava de tê-la como minha mãe.
 Assoprei todas elas e desejei que a vida na escola fosse mais fácil. Quem sabe, até, que a Sara gostasse de mim, também. Era meu aniversário, e eu podia ao menos sonhar.
 O bolo era de chocolate, com camadas de algo pastoso que também era sabor chocolate, e tinha um belo glacê branco. Ele estava muito bom. Minha irmã deu risadinha e disse que eu tava comendo bolo pelo nariz, ao ver onde o glacê tinha parado. Dei língua pra ela e tirei a pasta doce e branca com o dedo e o lambi. Bolos de aniversário eram tão gostosos!
 Depois que partimos o bolo, fomos assistir tevê, e meu pai me deu um pouquinho escondido. Mas não se consegue esconder nada da dona Marta.
"Paulo! Não dá cerveja pro menino!" minha mãe esbravejou.
"É só um pouquinho, Marta, ele não vai ficar bêbado."
 Provei o líquido âmbar e borbulhante. Era gelado, e muito amargo. Como ele gostava daquela coisa?
 Na tevê, passava um filme de detetive, e eu não assisti muito. Acabei caindo no sono. Acordei de madrugada, com fome. Um lanche ia cair bem, e eu já sabia o que iria comer. Fui na cozinha e abri a geladeira. Lá estava ele, o bolo. Tirei uma fatia.
 Depois do bolo, fui escovar os dentes. A pasta de hortelã era tinha um sabor estranhamente bom. Enxaguei a boca e fui dormir.



 Uns dias depois, meus pais iam pra um jantar, os dois. Eles deixaram as crianças na casa, pois já eramos grandinhos. Eu tinha feito treze, e minha irmã ainda fizera doze uns meses atrás. Pediram uma pizza pra gente e deixaram o dinheiro. Os dois pombinhos fecharam a porta e sumiram na noite.
 As crianças estavam sozinhas na casa. A gente assistia tevê, alguma um reality show de gastronomia, dessa vez. Era engraçado quando o chef gritava com as pessoas e elas choravam.
 Eu estava rolando no tapete, só por diversão, quando a pizza chegou. Dei o dinheiro, peguei o troco. A pizza cheirava bem, como se tivesse saído do forno naquele momento. O queijo escorrendo e a calabresa dava uma sensação amanteigada, salgada e quente na minha boca. A Dete - Bernadete - e eu disputávamos pra ver quem comia mais rápido a sua metade da pizza. Foi uma corrida acirrada, mas eu ganhei na última fatia.
 Minha irmã colocou num canal de desenhos, e eu assisti até dar sono. Quando me virei, ela já tinha contado todos os carneiros, ou assim esperava o dono de todos aqueles carneiros. Eu acordei ela, e fiz ela ir pra cama. Ela reclamou um pouco, mas acabou cedendo. Eu também fui, mas perdi o sono e comecei a ler O Ladrão de Raios.
 Mitologia grega era legal, e o personagem principal passava por cada coisa!
 Quando cheguei na parte de um jardim de estátuas, fiquei com vontade de comer algo doce. Será que ainda tinha bolo na geladeira? Faziam duas semanas que não tinha mais notícias dele. Desci as escadas, acendendo as luzes no caminho. A sala estava quieta e aconchegante. Passei pelo corredor e entrei na cozinha.
 A geladeira era branca e alta. Quando a abri, um mundo se iluminou. Pus me a procurar.
 Toc. Toc.
 Eu olhei ao redor, assustado. Alguma coisa estava batendo, e eu não sabia se queria deixar entrar. Olhei pela janela, mas não havia nada. Também não havia ninguém na porta da cozinha.
 Toc. Toc.
 O barulho não vinha de fora, vinha de dentro. Olhei ao redor, mas estava tudo vazio. Respirei fundo, me controlando. Vai ver era só uma besteira, e eu estava todo assustado a toa.
 Toc.
 Eu olhei pra geladeira.
 Toc. Toc.
 Fui descendo os olhos pelas prateleiras. O barulhos estava perto.
 Toc. Toc. Toc.
 Quando eu olhei, no fundo mais escondido da geladeira, estava um pote, esquecido por todos. Não era ali que o bolo estava? O pote se mexeu, e eu me assustei. Peguei o pote com cuidado. Ele tremia de vez em quando, com se algo tentasse sair. Coloquei-o no balcão, e devagarinho, abri a tampa ara dar uma espiada. Quando vi o que estava la dentro, não conseguir segurar o grito na minha garganta.
 O bolo tinha uma boca enorme, com dentes e mais dentes. O glacê ficou cinzento, exceto pelos olhos que ganhara, que eram vermelhos e brilhosos, como uma luz traseira de carro.  Ele mordia o ar incessantemente, fazendo um barulho terrível.
 O susto me fez cair, e comecei a fugir, me arrastando para longe da terrível sobremesa. Tentáculos que pareciam cipó saíram do pote e deram asas - ou melhor , pernas- ao bolo. Ele se apoiava por toda cozinha, e procurava por mim.
 Me encontrou no chão e tentou me segurar. Um dos tentáculos-cipó alisou minha perna, masconsegui puxar a tempo. Levantei e saí correndo, em direção a sala. A criatura horrenda corria atrás de mim, lançando seus longos braços ao meu encontro.
 Subi as escadas, e mais tentáculos voaram em cima de mim, derrubando  os porta-retratos da parede. Pulei dos últimos degraus, e corri em direção ao quarto. Até que um dos cipós agarrou meu pé. Estava arruinado. Arfando, comecei a chutar aquela algema, mas não cedia por nada desse mundo. Meu coração estava na garganta. Segurei numa cômoda o mais forte que pude, mas meus dedos quase largavam meu móvel salva-vidas. O bolo, feliz por finalmente captura sua presa, investiu contra mim, abrindo a boca o melhor que podia. Todos seus dentes estavam a mostra e ele vinha com toda a força.
 De supetão, minha irmã abriu a porta.
 "Que barulheira é essa que você está fazendo? Tem gente tentando dormir, sabe?"
 Eu não sei o que aconteceu - se o bolo bateu na porta, ou se ele apenas desistiu de mim - mas o cipó largou do meu tornozelo. Eu nunca fiquei tão agradecido por ver a Dete. Entrei no quarto dela, e tranquei a porta. Ela abria para fora, então não havia como arrombar, e eu duvidava muito de que os cipós pudessem quebrar a porta.  Mas a falta de força não impedia o Bolo de tentar entrar. Batia forte, e daria para escutar até fora da casa.
 "Lucas, o que era aquilo?" Minha irmã esbugalhou os olhos para mim.
  Com toda seriedade do mundo, disse:
 "Aquela coisa, maninha, é o meu lanchinho da madrugada."

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