Lanchinho da Madrugada (parte 2)

  O bolo assassino sumira. Por enquanto.

   Para onde ele foi, Lucas não fazia ideia, e também não se importava, desde que não estivesse dentro do quarto. Sentado na porta, finalmente teve tempo para pensar. O que ele faria? Ele precisava fazer alguma coisa? E se seus pais encontrassem a sobremesa vingativa? Ele não teriam chance. Ele teria que pedir ajuda! O bolo devia ser detido. De alguma forma.

  "Dete, liga pra alguém pra pedir ajuda."

  "Pra quem que eu vou ligar?"

  "Pra alguém, qualquer um. "

  "Eu ligo e falo o quê?" ela disse. " 'Alô?! Mãe?! Lembra o bolo do aniversário do Lucas? Então, ele criou vida e quer COMER A GENTE!' Não sei se ela vai acreditar."

 "É só falar que a gente tem uma emergência, e que eles precisam vir aqui o mais rápido possível!"

  Não muito convencida, Bernadete se levantou e foi buscar o telefone. Ela olhou na mesa de cabeceira, em cima da cômoda, na escrivaninha, na cama... Seu rosto era inexpressivo, tão impassível quanto seria a Morte em pessoa.

  "O telefone... Ele..."

  Lucas gelou. Ele sabia onde telefone estava. Claro que sabia, como pôde esquecer?

  "Não..." ele gemeu.

  "Sim."

  "Não..." ele gemeu ainda mais forte.

  "Sim, Lucas. Ele está lá na sala. A gente precisa descer até lá."

  O sangue latejava em seus braços e pernas. Sua garganta estava seca. Ele não queria descer. Ele não queria descer nem um pouco. Será mesmo que ele precisava ir lá? Talvez seus pais... Seus pais. Lucas precisava avisá-los. Ele viu aquela coisa. Qualquer um que recebesse uma saudação inesperada daquilo não seria capaz de sorrir de volta. Isso porque aquela coisa teria comido seu rosto.

  Não, esperar pelos pais não era uma opção. Uma lufada de esperança beijou o rosto de Lucas.

  "A janela! Alguém deve estar na rua. Nós podemos pedir ajuda por ali!"

  Ambos correram pra janela, abriram-na de supetão e começaram a gritar. Gritaram por cinco, dez quinze minutos. Ninguém aparecia. As luzes laranjas dos postes quebravam a escuridão noite, e tornavam tudo mais macabro, como se estivesse de luto pela esperança das crianças.

  "Ninguém vai aparecer" disse Lucas, desolado. Sua irmã não se conformou e continuou gritando, mas ele sabia que aquilo não ia funcionar. E mesmo se funcionasse, o que um estranho faria? Tinha que ligar para alguém. Seus pais também não seriam de grande ajuda. Quem sabe a polícia? Era sua única esperança.

  "Dete, escuta. O plano é o seguinte: Eu vou lá embaixo, pego o telefone e volto pro quarto. Assim, nós podemos falar com alguém. Você fica aqui e me espera, ok?"

  "Tá doido? E aquela coisa lá fora? A gente não sabe onde ela está, nem o que ela tá fazendo. E se ela estiver te esperando atrás da porta?"

  "A gente tem que fazer alguma coisa! Aquele monstro lá embaixo não vai sumir sozinho."

  Os olhos de Bernadete circularam pelo local, e acharam um cabideiro de madeira. Ela o desmontou e entregou a Lucas.

  "Pronto, se aquela coisa aparecer, você empurra ela pra longe e corre pra cá."

  Lucas respirou fundo, e assentiu. Com sua lança improvisada nas mãos, ele se dirigiu à porta. Seus joelhos tremiam, seu coração batia rápido. Sentiu um impulso forte de largar aquele pedaço de pau e se jogar na cama. Choramingou. Sua mão segurava a maçaneta, mas não a abria. Porque tinha de fazer aquilo? Não era mais fácil deixar tudo pra quando eles chegassem? Alguém não poderia salvá-los? Meu Deus, eles eram apenas crianças. Lucas sentiu um afago morno nas costas.

  "Você não precisa ir, se não quiser." A voz de Bernadete tinha um tom preocupado e indulgente. Lucas sorriu. Sua irmã era mesmo um amor.

  "Eu tenho que ir. Vou devagarinho, sem fazer barulho. Desço, pego e subo. Vai ser fácil," ele disse. "Vai ser fácil." Lucas não sabia se mentia para ela, ou para si mesmo. Mas a preocupação da irmã lhe deu direção. Tinha treze anos, já era um homem, e tinha que cuidar da sua família.

  A porta se abriu, revelando o corredor. Até então, nenhum sinal do monstro. "Deixa aberta," sussurrou, " que eu já vou voltar." Mal sabia ele que não voltaria mais naquele quarto.

  No corredor, Lucas andava de mansinho. Passo atrás de passo, sempre esperando algum barulho. Nas escadas, cacos de vidro se espalhavam pelos degraus, obrigando Lucas a fazer um esforço maior ainda. Não havia barulho nenhum. Ele não gostava disso. Não fazia ideia de onde o monstro estava, e odiava ainda mais esse fato.

  Os degraus se foram, e o piso se fez. Lucas procurava o celular com os olhos, pois as pernas estavam muito ocupadas preparando sua fuga caso o bolo aparecesse. "Vamos lá... Cadê você..." Do seu lado esquerdo, estavam a porta da frente, uma janela e parte do sofá encostado na parede. Nada no tapete. Nada no sofá. Olhando para a direita, viu, que encostada na parede e perto do corredor que dava para a cozinha, havia uma mesa. Lá estavam uma fruteira de coisas de plástico, um controle remoto e... o telefone. Ele achou o telefone!

  Os pés de Lucas começaram a se mover.

  No mesmo instante, o gato da família entrou na casa, pela passagem de animais. Sua pelugem era cinza e andava com graça angelical. Chegando mais perto, se arrastou contra a perna de Lucas, ronronando. Xingando baixinho, Lucas enxotou a bola de pelos, caminhou em direção ao telefone. Um passo. Dois passos. Três. Só mais um pouco.

  O telefone começa a tocar.

  O sangue de Lucas gelou, seu interior desmoronou. Como um flash, ele pega o telefone e tenta abafar o som. Mas não foi rápido o bastante. Da cozinha, ele podia ouvir batidas contra as paredes, cada vez mais alta. Lucas botou o telefone no bolso e disparou para a escada.

  Mas, dessa vez, ele não deu tanta sorte.

Lanchinho da Madrugada (parte 1)

 Era um aniversário comum.
 O que é engraçado de se dizer, pois aniversários não deveriam ser comuns. Mas aquele era. Nada muito festivo ou brilhante, só tinha a gente. Minha mãe tinha feito o bolo, e minha irmã fez uns doces. Eu saí com meu pai, para comprar uma decoraçãozinha qualquer. Eu disse que não queria decoração, mas minha mãe insistiu.
 O jantar antes do parabéns foi animado. Meu pai contava histórias da infância dele, de como ele pegava fruta do pé na casa dos outros, de quando quebrou a perna fugindo da casa da namorada - não da casa em si, veja bem, mas do pai dela. Minha irmã foi mais legal comigo do que o habitual. Me deixou ficar com o último pedacinho dos frangos a milanesa. "Não se acostuma com isso," ela resmungou. Uma amor, a Dete.
 Eu fui o primeiro a terminar. Meu pai e minha irmã, logo depois, e minha mãe foi a última. Ainda estávamos na conversa, enquanto terminávamos, e quando o assunto morreu, minha mãe se levantou e retirou a mesa. Minha irmã ajudou ela.
 Enquanto as mulheres estava na cozinha, meu pai falou baixinho pra mim:
 "13 anos, hein?! Tá virando um homem. Se você prometer que não conta pra sua mãe, a gente divide uma cerveja depois do bolo."
 Eu prometi, não sabendo se aquilo era uma coisa boa ou não.
 Minha mãe apareceu, da porta da cozinha, com um bolo todo enfeitado de velas. As chamas dançavam conforme ela andava, e me hipnotizaram tanto que eu nem ouvi o início do cântico. "... nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida." Elas cantavam em coro, e meu pai se juntou apenas com palmas. Eu sorri, e olhei para o bolo. Ele dizia: "Parabéns Marreco!" Marreco é como o meus pais me chamavam quando era pequeno.
 "Vamos lá, faz o pedido," disse minha mãe. Seus dentes brancos contrastavam com sua pele morena e olhos castanhos. Ela era bonita, e eu gostava de tê-la como minha mãe.
 Assoprei todas elas e desejei que a vida na escola fosse mais fácil. Quem sabe, até, que a Sara gostasse de mim, também. Era meu aniversário, e eu podia ao menos sonhar.
 O bolo era de chocolate, com camadas de algo pastoso que também era sabor chocolate, e tinha um belo glacê branco. Ele estava muito bom. Minha irmã deu risadinha e disse que eu tava comendo bolo pelo nariz, ao ver onde o glacê tinha parado. Dei língua pra ela e tirei a pasta doce e branca com o dedo e o lambi. Bolos de aniversário eram tão gostosos!
 Depois que partimos o bolo, fomos assistir tevê, e meu pai me deu um pouquinho escondido. Mas não se consegue esconder nada da dona Marta.
"Paulo! Não dá cerveja pro menino!" minha mãe esbravejou.
"É só um pouquinho, Marta, ele não vai ficar bêbado."
 Provei o líquido âmbar e borbulhante. Era gelado, e muito amargo. Como ele gostava daquela coisa?
 Na tevê, passava um filme de detetive, e eu não assisti muito. Acabei caindo no sono. Acordei de madrugada, com fome. Um lanche ia cair bem, e eu já sabia o que iria comer. Fui na cozinha e abri a geladeira. Lá estava ele, o bolo. Tirei uma fatia.
 Depois do bolo, fui escovar os dentes. A pasta de hortelã era tinha um sabor estranhamente bom. Enxaguei a boca e fui dormir.

Exercício de Ficção: Criar uma narrativa, aplicando a estrutura de cenas e sequências.

                                              A odisseia do café da manhã

  Eu acordei, querendo comer pão no café da manhã. Levanto-me da cama, me arrumo e parto em direção à padaria.
  No caminho, um terremoto, aleatório e curto, parte estrada que leva a padaria a meio, criando uma fenda. Eu preciso atravessar aquele buraco, pois desejo muito comprar pão. A fenda era escura, e parecia funda. Tenho medo medo. Será que conseguirei pular? Eu tomo impulso e pulo. Voando por cima da fenda, aterrizo do outro. Levanto, tiro a sujeira das roupas e continuo minha jornada.
  Um cachorro aparece e começa a latir em minha direção. Ele é preto, um pouco grande e seus latidos são altos.  Tenho medo do dele, e isso paralisa meus movimentos. Respiro fundo, tomo coragem e começo a circular o cão com cuidado. Finalmente, consigo passar pelo cão e chego a padaria. Entro no local, e falo:
  "Bom dia, me vê três reais de pão."
  O atendente, com olhos sinceros e firmes, fala: "Hoje não temos pão."
  Fico indignado! Como uma padaria não tem pão? Eu passei por um monte de maus bucados, e agora eu não posso nem comprar meu pãozinho? Agora, o que faço? Eu posso voltar para casa e não comer meu  café da manhã, mas não gosto nenhum pouco dessa opção. Poderia ir numa padaria mais longe. Não é o longe a ponto de eu perder a hora do café, mas o suficiente para ser irritante.
  Me ponho a caminhar em direção da padaria distante, em busca de meu café da manhã.
  No meio do caminho, percebo qual é a esquina que devo virar para encontrar a padaria. Devo perguntar a um estranho. Acho um senhor simpático e barbudo, sentado num bar. Pergunto-o:
  "Bom dia, senhor. Você sabe me dizer qual destas ruas se encontra a padaria?"
  "Claro que sim! É a segunda esquerda."
  "Muito obrigado."
  "Espere um momento moço," disse o senhor, "não pode me dar uma esmolinha, pra comprar meu almoço?" Sinto pena do velho, e lhe dou um real.
  Cheguei a padaria. Tinha um delicioso pão doce na vitrine, e decidi que ele seria meu café da manhã. Entregando o dinheiro à atendente, peço-lhe:
  "Me vê esse pão doce."
  "Falta um real." É a resposta que ela me dá.
  Sinto-me devastado. Se não fosse por aquele ato de caridade, eu poderia comer o mais incrível dos pães doces! Não poderia deixar passar, assim tão fácil. Eu fiz um grande esforço, merecia comer aquele pão doce. Não era hora de desistir.
  "Você não pode fazer um desconto? Esse é todo dinheiro que tenho!" Persisti com humildade.
  "Me desculpe, mas não posso fazer isso. Normas da casa."
  "Tem certeza?"
   A atendente acenou com a cabeça.
  Suspirando, reconheço minha derrota. Teria de comer aquele pãozinho sem graça. Estendendo a mão, ouço uma voz:
  "Aqui, agora você pode comprar", disse uma menina, tão linda quanto uma anja. Ela me entregava uma moeda de um real.
  "Você tem certeza?" Perguntei, não acreditando que me café da manhã salvo por um ser tão belo.
  "Sim, tenho. Eles são gostosos, não é justo você não provar só  por causa de um real."
  Meu peito se enche de alegria, e com um grande sorriso no rosto, agradeço-lhe. Ela sorri de volta, e seu sorriso derrete  meu coração.
  Volto para casa, com um pão doce na sacola, e o sorriso da anja na minha memória. Não fora uma manhã ruim.