Quando os mortos contam histórias

  Você gostaria de ouvir uma história de fantasma? Eu vou lhe contar uma. Essa tem relação com o mar. Eu sempre amei o mar. Mas nunca achei que ele me amasse de volta. Nunca vou esquecer do dia em que nos tornamos um. Vou descrevê-la a vocês agora.
  Era de manhã quando nos levantamos. Depois de todos tomarmos café ao som de pássaros, eu fui assistir um tal programa do jacaré com um garotinha de belos cabelos negros que deveria ter entre sete e dez anos. Do programa eu não me lembro muito; da garotinha, a voz engraçada.
  A gente passou numa loja para comprar alguns lanches e pegamos uma balsa para atravessar o que eu acho que era um lago, mas poderia ser o mar - não me lembro muito bem. A água tinha uma cor verde acinzentado escuro, devido a quantidade do que eu calculava ser poeira. Foi divertido ter o chão balançando aos seus pés e água o rodeando. Para alguns isso poderia ser sinal de encarceramento - vai que você é um recém-náufrago?! Porém, para mim, era sinal de liberdade e poder. Sim, poder. A capacidade de andar sobre as águas e dominar os oceanos.  Era uma doce ilusão, mas não deixava de ser doce.
  A gente chegou na praia cerca de oito e meia, nove horas. O sol começava a espreguiçar seus raios, e a areia fofa estava quase morna. Pessoas com trajes de banho passavam pelo local. Crianças brincavam na areia. Grupos de amigos conversam nas suas cadeiras de praia. Corpos femininos, alguns belos, outros, nem tanto, movimentavam-se para lá e cá com biquínis coloridos. O mar nos saudava da maneira que a mãe natureza o educou a fazê-lo: Cantarolando a nós sua bela sonoridade rítmica - Shuárr, Shuárr.
  O guarda-sol foi fincado na areia. Cadeiras foram armadas. Roupas foram tiradas. Os gêmeos Conforto e Sossego reinavam o lugar com amor, e Paz foi criada dessa união. Uma pena que ela tinha seus dias contados.
  Eu e minha irmã fomos correndo em direção a água. Nos divertíamos com o vai-e-vem das ondas. Elas vinham com ternura, nós corríamos de brincadeira. Elas voltavam com raiva, e nós tentávamos nos desculpar. E, de pouco a pouco, o grande mar foi nos envolvendo, trazendo para mais e mais perto de seu âmago. Esse transe quase hipnótico não afetariam um adulto, mas éramos apenas crianças na época, criancinhas.
  O grande Mar, que não compreendia nossa infantilidade, foi de pouco a pouco nos preparando uma armadilha. De pouco a pouco nos dando espaço, porém nos atraindo. De pouco a pouco criando um buraco.
  E nós acabamos caindo.
  Nós mergulhamos na água, e de repente ela se agitou. Foi como se uma fúria tênue e crescente viesse a tona. O mar nos envolveu, nos engoliu, nos venceu. Não tínhamos para onde fugir. Nos víamos rodeados pela fúria do grande Mar, que tentava substituir nosso ar por sua água. Lutávamos por nossas vidas, eu e ela. Quando estávamos a sair, ele nos puxava de volta. Debatendo-se contra a água, toda chance de respirar é valiosa, e gritos de socorro são importantes, mas não prioridade.
 A água do mar é salgada para a boca e intragável pelos pulmões. E quando você perde as energias, não há muito o que fazer além de aceitar. E quando você aceita, tudo fica pacífico, claro. Fica óbvio que o grande Mar não era mal. Era amoroso. Ele apenas queria dar o que os gêmeos impostores clamavam providenciar. Eu lhe agradeço, grande Mar. Graças à você, tenho paz agora.
  A minha irmã foi salva. Infelizmente, eu não tive a mesma sorte. Que fique de lição: O grande Mar tem seus encantos, e ele adora ingênuas criancinhas. Onde estão os fantasmas, você pode perguntar. Eu lhe respondo "Fantasmas não podem contar histórias?"

Abrindo o coração

  Ficção ou não-ficção: Eis a questão. Por um tempo venho me perguntando de qual dessas áreas eu sou.  Ás vezes duvido se eu sou um escritor. É complicado decidir isso quando todos o desencorajam.
  Minha história como escritor é breve. Nunca cheguei criar personagens, não me importava muito com eles. O que eu gostava era de imaginar. Gostava de explorar as florestas densas, ouvir gritos de alarme, ser o herói combatendo o tigre. Ser o cara que conquistava a garota.
Ser o maioral. Ser o engraçado. Ser o tímido que ultrapassava o limite conseguia alcançar a felicidade. eu não crio personagens para eles viverem. Eu crio o personagem para viver por eles. Para me aventurar, vivenciar, experimentar, para poder voar. É nisso que eu amo da literatura.  Ela é capaz de me fazer reagir, e eu amo isso. Eu amo jogos porque eles me divertem. Eu amo criar jogos porque eu quero passar esse sentimento para outros. Eu quero ser um escritor, não porque desejo fama ou a vida luxuosa do artista. Eu quero ser escritor porque eu quero dividir com as pessoas o que minha mente é capaz de criar no quesito diversão. E eu não quero dizer diversão apenas. Eu quero dizer amor, vitória, heroísmo, liberdade. É isso que eu quero passar para as pessoas. Eu quero passar para as pessoas como fazer a justiça poética com as próprias mãos. Os meus personagens favoritos são modelos do que eu poderia me tornar. Talvez eu tenha que criar o mesmo. E eu sei que para isso é necessário passar pela dor da disciplina. Mas que venha a dor. É pelo caminho da disciplina que eu alcanço os meus sonhos. É pela dor da disciplina que eu mostro para o mundo quem eu desejo ser. Quem realmente sou.
  Ficção, não ficção, não importa. Eu sou um escritor porque escritor é quem devo ser.

A Troca

  ELA chegou a lanchonete. “É aqui.”
  Empurrando a porta, Joana observa o local. “Será que ele já chegou?”, indagando-se nervosamente. Com um passo atrás do outro, ela se aproxima a uma mesa de dois lugares. Olhos masculinos a seguem, refletindo se o que viram debaixo do sobretudo foi uma gostosa. Joana estava acostumada com os olhares. Sim, era uma gostosa. Quanto a Joana, ela não deu importância. Anos de prática, ela sempre repetiu.
  O garçom se aproxima, a senhora deseja alguma coisa? Água, por favor, ela responde. Água seria muito bem-vinda. A garganta dolorida e a boa seca estava completando as mãos suadas e o coração galopante. Hoje era um dia importante. Marcara com o homem misteriosos havia algumas semanas, e ficara na ansiedade desde então. Márcia lhe disse para não ir. Era fácil para ela falar, ela que não precisava daquilo.
  Olhou para o relógio: quinze para as nove. Havia chegado cedo. Colocou uma bolsa no outro banco, tomou um gole, relutante, e respirou fundo. Um jogo de futebol estava passando. Um time de blusa de listras vermelhas e pretas disputava com uma de cor azul. Começou a assistir, finalmente se distraindo.
  Um homem entra no campo de visão. O diafragma se move com mais força, fazendo ela respirar rapidamente. Era ele. Um sujeito afrodescendente se senta, olhando ao redor. Tinha uma barba escura encaracolada, usava óculos escuros e um chapéu de mafioso.
  “Como vai?”, ele diz. Sua voz apresentava um tom de urgência.
  “A cada dia respiro menos”, respondeu com a senha.
  “O dinheiro, onde está?”
  “Na boa do seu lado.” Ele abre, checa o dinheiro. Estava tudo ali.
  Um policial passa perto a mesa. Ambos prendem a respiração. “Seu guarda.” o homem diz. O guarda acena com a cabeça e continua andando. Aliviada, Joana respira fundo.
  “Acho que você deseja esse aqui. Tem certeza que não importa qual é o produto?”
  “O importante é que dê para cheirar.”
  O homem coloca a mão na bolsa e retira uma pacote embrulhado em papel pardo.
  “Passe para cá.” Diz ela, ávida, quase gritando.
  O homem sai da lanchonete se perguntando como foi parar naquela vida. Lá dentro, uma Joana desesperada rasga o embrulho, abre o livro e sente o cheiro do paraíso. Ebooks não tinham a capacidade de suprir seu vício. Márcia nunca entenderia as necessidades de um viciado em cheiro de livros.


No campo de batalha.

  O tenente FimDaPicada foi convocado aos salões do inferno. Chegando lá, foi ter com um enviado do submundo. Ele lhe disse que tinha uma missão. Uma missão onde não poderia haver falhas. O alvo era uma gigante, e estava sendo testado por ordens superiores. O tenente era o homem para essa missão. O tenente disse poderia considerar feito. Ele, então, se dirigiu a sua tropa e começou os preparativos:
-Soldado FurorDeSangue.
-Sim, tenente.
-Você fica com a orelha. Tome cuidado, pois o inimigo tem crescido e fica mais ágil.
-Sim senhor!
-Soldado MordidaLigeira, você fica com a perna.
-Sim senhor!
-Faça um bom trabalho e deixe a marca do pelotão, soldado. Contamos com você.
-Sim senhor.
-Soldado AsasDaMorte.
-Eu, tenente.
-Eu quero que você ronde todo o perímetro. Vamos deixar esse bastardo sem sono.
-Sim senhor, tenente senhor!
-Senhores, se preparem para o banquete dos deuses.
Os soldados gritam em coro.


João havia chegado da faculdade exausto. Suas costas ardiam de tanto uso e seus pés choramingando de tanto esforço por ter ficado trabalhando em pé o dia inteiro. E ainda tinha a merda desse ar condicionado que não funcionava. Não teve outro jeito: Ligou o ventilador, abriu a janela e deu um pequeno voo em direção a cama.
-Pelotão, avançar! - Disse o tenente.
-Tenente, o ventilador está ligado.
-Continue soldado. Missão dada é missão cumprida.
Um zumbido passou pela orelha de João.
-Cuidado, FurorDeSangue, o inimigo começará o ataque!
-Está tudo sobre o controle, tenente.
-Tenente, o inimigo ainda está usando os jeans!
-Pro braço, MordidaLigeira, Pro braço. Vai, vai, vai!


  Depois de quinze minutos lutando contra o calor, a fatiga e zumbidos, o estresse foi tanto que a única coisa que João conseguia fazer era rolar na cama de um lado para o outro, gemendo. Seu colega de quarto, com quem dividia o apartamento recentemente, chegou a imaginar que João estivesse com companhia, ou com sua mão. Mas logo ele mudou de ideia, pois acabou se assustando com o que parecia ser um homem morrendo. Correu para o quarto, bateu na porta gritou:
-Está tudo bem?
  Porém, ele não foi houvido, pois no mesmo instante, João gritou com toda sua raiva e frustração, desabafando tudo o que dera de errado na sua vida. Ele gritou por todos que sofrem do mesmo mal, todos que perdem o sono. Ele gritou, assim como Cristo quando ele salvou todos os homens e mulheres da Terra:
-Caralho de mosquito DOS INFERNOS!

Abandono da Alma Gêmea

  Sentado numa poltrona, degustava um vinho doce e azedo. Próximo a ele, uma fogueira crepitava, aquecendo a o coração deprimido. Ela foi para lugar melhor, ele diz. Ela ficará bem, ele pensa. Lá fora o vento assobia, ali dentro o silêncio reina.
  A casa range, essa coisa velha feita de madeira. Tão antiga quanto seus bisavós, tão serena quanto sua doce Laura. Ele e a casa se conhecem a tempos, mas amigos nunca se tornaram. Agora o silêncio reina na casa. E a tristeza reina no coração.
  Lá fora o vento ruge, lá fora o tempo passa. Passa tudo, tudo passa. Tudo acaba, ele repete, se lembrando da doçura de Laura. Sua doçura agora jaz do lado de fora da casa, a sete palmos da terra e três quilos pedrosos de lembranças. Tão jovem, tão meiga, tão dolorosa a forma de partir.
  Foi pela dor, dor aguda, a de um coração quebrado. O coração tanto doía, que partilhou sua dor com os pulmões. Os pulmões rejeitaram essa tristeza, dizendo que era o coração que ficava triste. Jogaram para fora sua tristeza, tossiram fora sua solidão. Mas o coração era teimoso e negava a rejeição. Brigando eles, a doce Laura quem sofreu. Passara seus dias na cama. Foi-se cedo, ele reclama. Treze anos ela tinha.
Ainda podia ouvir chamar seu nome. Ela sempre gostou de cantarolar seu nome. Ela achava um tanto musical. “Richard... Riiichard...”
  Sua voz era suave, porém se tornava mais e mais nítida. “Eu lhe amei, Richard... Lhe dei meu coração...”
Era tão doloroso ouvi-la que Richard tentou se distrair. Cabeça aquela de Richard, tão indisciplinada. A voz tornava-se mais forte, como um sussurro, uma fala sem voz.”Lhe amei tanto Richard, tanto. Por quê?”     Lá fora o vento deixou de rugir para começar a estrondar. A casa lhe pareceu mais escura. O fogo deixava de lhe aquecer a pele. O frio lhe subia pela espinha. “Você foi uma pessoa má comigo, Richard”. “Quieta!”, ele lhe diz.” Calada!”, ele grita. “Você é só uma ilusão”.
  A janela abre, quase explode. O vento entra fortemente e casa range, como se tudo se enfurecesse. “Richard, querido, lhe amei tanto. Por que me deixou?”. “ Eu tive que deixar -lhe! Saia da minha cabeça.
O fogo se esvai. Um brilho azul invade a sala. “Quem lhe disse que estou em sua cabeça?”

  Ao longe, o vento rugia. Um grito ecoou. E Richard se desculpou pela última vez.